pistas para olhar de novo o mundo

Moacir dos Anjos

Fevereiro / 2017

Muito pode ser dito da obra de um artista que por quase três décadas refaz o mundo que enxerga em imagens partilhadas quase sempre na forma de fotografias. Talvez pouco desse muito a ser potencialmente falado ou escrito, contudo, seja de fato necessário ou importante, posto que a palavra sempre falta quando o olhar tem tempo.

Traduzir em discurso articulado o que Rogério Ghomes tenta produzir em seus trabalhos é tarefa destinada, ademais, sempre a relativo malogro. Não por ser obra fechada a interpretações ou de compreensão difícil. Ao contrário, suas imagens usualmente acolhem a quase todos que se detêm diante delas, ainda que nunca de modo idêntico. A razão da dificuldade é mais a de descrever aquilo, embora implicado nas fotografias do artista, não está nelas visível, posto que os trabalhos de Rogério Ghomes não raro confundem o que é esperado de imagens construídas por uma câmera: querem mostrar ao mesmo tempo que escondem ; dizer e igualmente calar diante do que figuram. Não há, entretanto, como deixar de tentar enfrentá-las com palavras. Não para atribuir-lhes um sentido claro e uno ou para decifrar o que não requer explicação, mas para pontuar algumas de suas dobras ou incontornáveis obsessões. Para tentar entender seu poder de afetação.

Não confie na sua memória (2002)

Não confie na sua memória (2002)

Não há começo certo para esse intento de tradução ou qualquer intenção de fazer cronologias. Trata-se apenas de por em destaque alguns dos traços da obra do artista e aproximá-los entre si. E uma das mais evidentes dessas características é o fato de, embora ancorada em imagens, não abandonar o desejo pela linguagem escrita, sustentando uma vontade de proximidade e mistura. Há mesmo trabalhos em que primeiro se sobressaem palavras ou frases, confundindo o signo escrito com a coisa que é retratada. Em um deles, lê-se alerta por cima de nuvens e céu azul: “não confie na sua memória”. Aviso ainda vigiado pelo espelhamento das letras complementares sobre o suporte fotográfico que lembra, paradoxalmente através de palavras, que o olhar é construtor de subjetividades e que a história de cada um é reencenação do agora. Um elogio torto mas firme à prática de registrar o esquecimento que é própria da fotografia.

Preciso acreditar que ao fechar os olhos o mundo continua aqui (2007)

A tensão que existe entre imagens e textos em alguns trabalhos aparece também nos muitos sugestões de títulos que contribuem para os significados possíveis das imagens a que se destacam. Um deles, que parece ser um pedido ou prece - Preciso acreditar que ao fechar os olhos o mundo continua aqui -, acompanha dois trípticos de imagens que parecem ser um jardim ou bosque iluminado pela luz do dia visto desde o sombreado interior de uma casa; imagens filtradas por uma cortina fina que tanto esconde quanto mostra o que uma câmera captura. Esse fora e esse dentro implicados nas fotografias sugerem uma oposição entre o vasto e o particular ou entre a paisagem e o íntimo que o artista repõe, em termos diferentes, em vários outros de seus projetos. Em Olhai, Rogério Ghomes alinha três imagens do mar capturadas do ponto de vista de quem está na praia de modo a criar um horizonte acidentado, um desvio da continuidade topológica do mundo. Em Voltando para casa , por sua vez, fragmenta e multiplica as imagens do céu registradas desde o interior de um avião. Em ambos os casos, as paisagens contrastam abertas não somente com o lugar fechado a partir de onde foram feitas mas também com a visada singular que afirmam. Como se o que se vê, por mais amplo que seja, fosse em verdade espelho do que cada um sente.

Voltando pra casa (2006-08)

Essa introspecção fotográfica se insinua ainda na falta de contornos precisos daquilo que é fixado em imagens, mesmo quando comparada a um algo tão bem definido a distância entre duas cidades e o tempo gasto para percorrê-la. Apesar do seu título remeter a informações inequívocas, as fotografias que compõem LDA_CWB // 379KM_4h46MIN são propositadamente desfocadas, borrando o que poderia haver de específico naquelas coordenadas. As cores quentes e enevoadas das paisagens despovoadas - tomadas, provavelmente, do interior de um automóvel em movimento - sugerem estranhamente frieza e distanciamento, revelando talvez mais do estado de espírito de quem as recriou em fotografias do que algo que fosse dado a qualquer um registrador fazendo travessia semelhante. Sensação que parece também se inscrever nas fotografias de um parque de diversões ao anoitecer reunidas sob o título do Space Project. Mais do que exibir as características supostamente próprias daquele contexto, como as imagens parecem segredar a necessidade de silêncio ou um sentimento de melancolia, em aberto contraste com o que comumente se espera de um testemunho visual de ambiente tão barulhento e festivo.

Space project (2002)

LDA_CWB // 379KM_4H46MIN (2013)

Incrível como um distúrbio afeta a credibilidade (2007)

curioso que em quase nenhum dos trabalhos do artista exista a presença da figura humana, sendo mais frequente encontrar neles espaços sem gente. Embora sempre subtendidos na impressão que as fotografias deixam em quem examina, somente em ocasiões ocorridas o registro dos corpos que habitam os territórios fixados são postos à vista. Uma dessas exceções é o políptico composto de oito imagens - arranjadas de forma a ter um vazio no centro - que mostra, como se fossem stills de uma cena filmada à distância, um jovem correndo na praia acompanhado de um cão. Não há qualquer intenção naturalista na captura dessas imagens tomadas ao acaso, às quais é dado um título desconcertante: Incrível como um distúrbio afeta a credibilidade. Tudo ali é filtrado por um vermelho intenso, de alguma maneira torcendo os sentidos que essa prosaica ação poderia de outro modo possuir. Sentidos que são formados através do olhar de quem considera sua estranheza.

Donde estoy, estoy a esperarte (2011)


O que é crível ou não nunca é, aqui, algo objetivo, sendo antes o resultado de uma negociação em aberto que Rogério Ghomes envolve com qualquer um que se depare com suas fotografias. Outra importante operação realizada pelo artista é a de compor ou propor significados das imagens que produz por meio de edições em que agrupa como se fez parte de uma coleção que não tem fim certo. Em Donde estoy, estoy a esperarte , aproxima mais de trinta fotografias de bancos vazios, ao longo do tempo, em parques e praças de várias cidades. Se o título geral e a imagem isolada de cada um deles podem sugerir sentimentos de expectativa afetiva ou lembrar perdas passadas, juntá-las todas sobre uma mesma superfície como torna também partes de uma tipologia visual de mobiliário urbano, adicionando ao trabalho uma camada informativa contrastante. É na fricção entre esses dois conjuntos de indícios - um subjetivo, o outro não - que sentidos possíveis das fotografias são evocados por quem as examina com atenção.

Todos precisam de um espelho para lembrar quem são (2007)

Há ainda duas outras estratégias aparentadas à edição aglutinadora de imagens que parecem importar à Rogério Ghomes para desdobrar os paradoxos que movem sua produção. Em uma delas, busca se acercar de um mesmo objeto por ângulos diversos, como se hesitasse diante dele quanto ao ponto de vista que melhor captura sua singularidade. É assim em Plaza Alemania, em que mais de um monumento público é registrado em fotografias tomadas a partir de posições distintas ao redor deles e depois expostas em grade, como se não pudesse haver hierarquia possível entre as variadas perspectivas do olhar. Como se fosse impraticável decidir sobre qual imagem melhor apresenta e resume o que se enxerga. Na outra estratégia adotada, o artista não muda o lugar de onde captura paisagens naturais ou construídas, mas o faz em dois momentos diferentes, registrando como pequenas mudanças que a passagem do tempo produz nelas. Dando a esses dípticos de paisagens quase idênticas o título de Todos precisam de um espelho para saber quem são , lembra que a imagem de si é produzida na relação com os outros e afirma o quão contingencial e provisória é qualquer representação fotográfica.

O espelhamento como estratégia cognitiva é confirmado na série Barroc, em que apinhadas vitrines de antiquários são fotografadas das calçadas em hora do dia em que a luz permite fragmentar e fundir, em reflexos, imagens de dentro das lojas e do lado de fora delas. Se essas fotografias parecem imediatamente afirmar a ostensiva presença de quem as tomou ali, elas igualmente aparentam ser paisagens feitas de cacos que engolfam quem as olha e as implicam como partícipes delas. Sugerem, portanto, não somente um desmanche dos limites entre espaços distintos, mas também uma equiparação entre ver e conhecer aquilo que nenhuma formulação discursiva pode substituir ou compensar. Fiel ao impossível projeto de mostrar velando, Rogério Ghomes oferece, em busca construtiva serena, pistas para olhar de novo e ainda o mundo.

 

NÃO CONFIE NA SUA MEMÓRIA (2002)
Plotter em vinil sobre chapa de acrílico, 100 x 150 cm.

PRECISO ACREDITAR QUE AO FECHAR OS OLHOS O MUNDO CONTINUA AQUI (2007)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g/m, 80 x 210 cm.

OLHAI (2001)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g / m sob metacrilato, 65 x 300 cm. Coleção Pirelli MASP.

VOLTANDO PRA CASA (2006-08)
Impressão C-print sobre metacrilato, 100 x 150 cm.

LDA_CWB // 379KM_4H46MIN (2013)
Impressão pigmento mineral sobre canvas, 210 x 144cm.

SPACE PROJECT (2002)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g/m  sob metacrilato, 80 x 120 cm.

INCRÍVEL COMO UM DISTÚRBIO AFETA A CREDIBILIDADE (2007)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g / m sob metacrilato, 100 x 60 cm, Coleção McLAren.

DONDE ESTOY, ESTOY A ESPERARTE (2011)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g/m, 180 x 480 cm - políptico composto por 36 fotos nos formatos:  40 x 60 cm | 20 x 30 cm | 10 x 15 cm, Coleção MAC USP.

PLAZA ALEMANHA (2015)
Pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g/m², 50 x 150cm.

TODOS PRECISAM DE UM ESPELHO PARA LEMBRAR QUEM SÃO (2007)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g/m , 50 x 150cm.

BARROC (2015)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g / m sob metacrilato, 120 x 80 cm.

 

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