o profano sudário
a produção de rogério ghomes no contexto da fotografia contemporânea brasileira
Tadeu Chiarelli
Março / 1997
A ênfase dada por vários jovens artistas locais ao “apagamento” da identidade do homem brasileiro (sem traços distintivos dentro da complexividade dos problemas sócio-culturais que assolam todo país), pode ser entendida no quadro da cultura fotográfica do país dos anos 90 como a contrapartida crítica, o “troco” irônico que essa geração de artistas/fotógrafos concedeu ao imenso acervo fotográfico produzido no Brasil até o início dessa década –, acervo esse preocupado em traçar a identidade do homem local.
Contra esse antigo e persistente afã de flagrar a qualquer custo as supostas peculiaridades da população brasileira – seu exotismo e sua folclórica singularidade –, artistas como Rosângela Rennó, Paula Trope, Cristina Guerra, Cris Bierenbach, Rosana Paulino e outros pontuaram – e vêm pontuando – a quase total impossibilidade de retratar o “Brasileiro”, imerso numa sociedade esmagada pelas contradições, onde as grandes massas ou os grupos marginalizados que as formam não têm voz e não têm cara.
Por outro lado, apesar de sempre partirem da realidade do homem local para realizarem seus trabalhos, esses artistas surgidos nos anos 90 parece que desde o início já haviam superado a necessidade de caracterizar a especificidade (ou a perda total) da identidade do homem brasileiro. Tendo como base inicial a descaracterização da população local, esses artistas falam do homem contemporâneo em geral, com sua individualidade engolida pelos meandros selvagens e devoradores do processo de globalização hoje em curso.
No mesmo terreno onde no Brasil proliferaram essas obras insatisfeitas com o caráter meramente denunciatório das mazelas da população ou de sua identidade “impoluta” ou “não peculiar”, surgiram ou se tornaram notórios, artistas que, embora também discutissem através da fotografia a questão da perda de identidade, ao invés de enfatizarem diretamente o social, preferiram explorar o problema através da especulação da própria identidade. Um resquício conservador, pequeno-burguês, num circuito que retomava as questões sociais, após anos de censura e arbítrio? Parece que não, porque as obras de artistas como Rubens Mano, Leonora Barros, Márcia Xavier, Rochele Costi, Rogério Ghomes e outros, mesmo partindo das indagações sobrea própria identidade, transcendiam o meramente pessoal para alcançarem o coletivo. Ao invés de partirem diretamente do questionamento da identidade coletiva do sujeito brasileiro ou não, partiram para a exploração da identidade do indivíduo, perdido nessa sociedade espessa demais, sem espelhos.
Absorvendo as contradições da sociedade local e filtrando-as no contato de suas sensibilidades autorais (a morte do autor para eles é uma falácia, e é contra ela que eles lutam), esses artistas, pontuando seus trabalhos com referências específicas ao próprio corpo, desenvolvem suas trajetórias indo do individual e do particular para o geral, para o comum a todos – não se prendendo (como de resto, o trabalho dos outros artistas citados) a uma problemática apenas local, mas sempre tendente ao universal.
Rogério Ghomes, no início da carreira centrava seu interesse na relação mórbida da fotografia tirada para documento de identificação e usada em túmulos de humildes cemitérios católicos: a imagem criada para a identificação (em última instância, criminal) do rosto de um indivíduo usada como índice da sua existência pretérita.
Sintomático nesses trabalhos é que em sua grande maioria eram produzidos com retratos do próprio artista: o único lugar previsto para si mesmo, a única certeza do futuro que Ghomes antevia era a identificação lapidar de um túmulo. Sem dúvida, essa é a interpretação primeira dessa série de trabalhos do artista. E a mais óbvia. Porém é instrutiva, tanto dentro do quadro social do país, quanto do próprio meio artístico local: qual a única certeza de um jovem brasileiro do sexo masculino na passagem dos anos 80 para os 90, com interesse em iniciar uma carreira artística, vivendo num centro periférico como Curitiba? A morte enquanto cidadão e enquanto artista.
A partir desses primeiros retratos “para lápides” – onde o artista colava sua foto de identificação em molduras de gesso apropriadas para túmulos –, Rogério Ghomes começou a aprofundar ainda mais as incógnitas de sua própria identidade. Se nos primeiros trabalhos seus retratos eram apresentados com o rosto voltado em direção ao espectador, algum tempo depois começam a ser apresentados de costas, negando qualquer possibilidade de reconhecimento.
Se em seus trabalhos iniciais já era possível perceber tanto certa inquietação formal quanto certa dimensão trágica – mesmo que ainda encapsulada por um travo de juvenil narcisismo –, nos trabalhos que se seguiram percebe-se nitidamente os sinais iniciais de amadurecimento do artista.
Em primeiro lugar, com seus retratos de costas, Rogério Ghomes aprofunda a questão da perda de identidade do homem contemporâneo (e não apenas local), sua perda de significação enquanto indivíduo e enquanto sujeito da história. Mais do que o retrato do jovem artista brasileiro Rogério Ghomes, aquelas imagens de nuca, não são sinais de uma presença, são índices de ausência – ou de inexistência – histórica e social. Toda essa problemática de significação do seu trabalho pouca ressonância teria, no entanto, se Ghomes mantivesse os esquemas formais de suas produções anteriores: fotos emolduradas que, em última instância, mantinham os esquemas de apresentação convencionais da fotografia.
A partir desse aprofundamento conceitual perceptível nos seus mais recentes trabalhos – ou, na verdade, por causa dele –, Ghomes passa a explorar o espaço tridimensional, através de instalações onde seus retratos de costas são processados de várias maneiras, agora sempre associados a matérias e situações inusitadas.
Mantendo constantemente como referência a complexa equação “identidade | anonimato | vida | morte”, em 1994, Rogério Ghomes produz a instalação Presentes ausentes: duas séries de módulos, a primeira contendo um retrato de sua nuca em negativo, a outra com a mesma foto em positivo: ambas emolduradas como quadros, porém dispostas no chão, com os módulos de cada série alternados, lembrando uma procissão ou, mais especificamente, uma fileira de túmulos.
Ali a fotografia, retirada do espaço virtual da “arte” (a parede) e colocada no espaço real da galeria, dava sinais inequívocos de que o artista – mesmo mantendo suas antigas indagações –, procurava formalizar suas inquietações sobre a vida, a morte e a perda irremediável da identidade, de maneira mais decisiva, propondo uma interação direta entre obra e espectador. Agindo dessa maneira, suas questões puramente individuais tendiam a ganhar uma dimensão profundamente coletiva, como se, através do expediente da instalação de seus trabalhos no espaço real, Ghomes “socializasse” suas angústias perante a vida e a morte, perante o esfacelamento da identidade individual na sociedade contemporânea.
A partir desses primeiros retratos “para lápides” – onde o Um segundo salto decisivo rumo a uma formalização ainda mais radical, deu-se em 1995 quando o artista, convidado a apresentar sua produção no Museu de Arte Contemporânea de Porto alegre, propôs a instalação Arquipélago: no espaço da galeria, fotos da nuca do artista espalhadas pelo chão, quase que totalmente submersas por aglomerados de pó de mármore, formando um grande arquipélago. Notável nesse trabalho como Ghomes conseguiu aprofundar o problema "identidade | anonimato | vida | morte”, amplificando as possibilidades de significação dessa questão, através de uma matéria natural utilizada para a construção de túmulos (o mármore), que “devora” a imagem não-identificadora do personagem. Arquipélago explora não apenas a questão da morte, mas a problemática da irremediável solidão humana.
Em 1996, Ghomes volta a surpreender nessa sua investigação obsessiva sobre o esfacelamento da identidade e suas relações com o desaparecimento e a morte, a partir do trabalho onde cria jogos de complexos significados, aliando num mesmo espaço fronhas brancas que servem de envelopes para os retratos de sua nuca e fronhas com a impressão serigráfica do mesmo retrato, em branco. O sono como antecipação da morte, o leito como metáfora da última morada, a impressão serigráfica como um sudário que não revela – antes esconde – a identidade de quem faz referência.
No meio dessa instalação, onde objetos tão cotidianos e íntimos (as fronhas) servem como suportes para uma imagem ao mesmo tempo estranha (o retrato de costas de um desconhecido) e familiar (a remissão ao sudário de Cristo é inevitável), obriga o espectador a revolver dentro de si questões que vão além de uma absorção apenas formal do trabalho do artista.
Com essa sua mais recente instalação – que se apropria tanto das paredes da galeria quanto do espaço de circulação do público –, Rogério Ghomes dá provas muito claras de que aquele viés “menos engajado” da fotografia brasileira dos anos 90 (mencionado acima) carregava em si, desde o inicio, a potencialidade em desdobrar-se em formulações estético | conceituais capazes de transcender o meramente narcísico, para ampliar-se para além dos limites do “indivíduo brasileiro” ou mesmo do “sujeito brasileiro”, para alcançar com sensibilidade os conflitos e inseguranças do homem contemporâneo.
Seus trabalhos recentes apontam para uma crescente radicalização no tratamento das questões que o mobilizam, denunciando igualmente o quanto a produção desse artista pode ajudar a ampliar o debate sobre a fotografia brasileira contemporânea, cada vez mais permeável a contaminações que, se desestabilizam sua “pureza”, também abrem-na para uma participação mais aderente ao debate artístico atual.
PROFANO SUDÁRIO (1997)
Instalação, fotografia, fronhas, dimensões variáveis, Coleção Fundação Cultural de Curitiba - FCC.