a imagem cristal na obra LDA_CWB // 379KM_4H46MIN

Sandra Gonçalves

Fevereiro / 2021

 
 

Introdução

LDA_CWB // 379KM_4H46MIN (2013)

A reflexão proposta neste artigo tem como objeto a sequência visual do artista, fotógrafo, professor e designer brasileiro Rogério Ghomes (Paraná, Brasil, 1966), denominada LDA_CWB // 379KM_4H46MIN realizada no ano de 2013. A obra está presente no fotolivro do artista intitulado Preciso Acreditar que ao Fechar os Olhos o Mundo Continua Aqui (Ghomes, 2017). Tal fotolivro compõem uma retrospectiva da obra do artista, onde sequências visuais de um cotidiano sem glória é o ponto de partida para reflexões sobre aquilo que está no entre das imagens e que neste trabalho se revela na banalidade dos acontecimentos dos dias. É um trabalho que desvela afetos, intensidades, potências, devires e onde o artista, na leitura aqui feita da obra, propõe uma questão a seus espectadores/leitores das imagens dadas: o que há para ver nestas imagens que se tem diante dos olhos? Que novos territórios aportam? Existe, por parte do artista, uma urgência, uma necessidade de confronto com essas imagens aparentemente banais. A resposta a questão proposta por Ghomes parece estar no entre. O entre como um  lugar de suspensão do tempo que se dá na mirada do agora, onde imagem e olhar se espelham e não há espaço definido entre passado e presente, apenas a suspensão de um instante que dura, que aqui se dá o nome de duração. Imagens que provocam tal derivação são chamadas de cristal (Deleuze,1990), são os cristais do tempo e que se mostram na duração que provocam (tempo vivido, qualitativo, intenso). Essas imagens incitam uma suspensão no tempo, que se contrai e expande de modo paradoxal, provocando epifanias naqueles que são por elas capturados. Tais imagens são, preferencialmente, encontradas na arte.

Imagens assim ocasionam uma espécie de suspensão temporal profunda, que perdura. Essa suspensão temporal faz conexão com o que dizem Deleuze e Guattari (1992, p. 207) sobre a intensidade dos afetos lançados pelo artista “[...] o artista é mostrador de afetos, inventor de afetos, criador de afetos, em relação com os perceptos ou visões que nos dá”. Ou seja, as imagens produzidas pelo artista  Rogério Ghomes, o choque intensivo que provocam e que dura, ocasionam naqueles que por elas se deixam tocar, uma desaceleração e reflexão profunda, uma entrada na plenitude da duração (Deleuze, 2020); há, por parte do artista e do observador interessado de sua obra a possibilidade de um encontro com uma espécie de tempo inflado, não cronológico, denso que pode ser vislumbrado em imagens de fatos, cenas e acontecimentos frutos de contingências e suspensões na vida do artista. Nesse sentido, os trabalhos de Rogério Ghomes são originados de uma intensa vivência do presente, sempre recoberto pelo passado, que ele transforma em arte a partir de movimentos de atualização que transformam a compressão passado presente no agora do devir.

Voltando pra casa (2006-08)

As sequências narrativas oferecidas por Rogério Ghomes, nessa fenomenologia do sentir, é mesclada com questões que o afligem no momento da criação e que são transformadas, ressignificadas como espaço fenomenológico de reflexão sobre o mundo. Seu trabalho tem relação com sua vida no sentido de que são experiências vividas por ele e compartilhadas, guiadas através de uma poética do agora (intenso), aparentemente banal. Assim, por exemplo, um voo, um céu azul, nuvens se mobilizam frente a Rogério Ghomes como matéria expansível para viagens intensas no seu agora e no agora daqueles que irão fluir sua obra.

Artista que é, Rogério Ghomes recolhe da vida os afetos vitais para a consecução de sua obra, que transforma “[...] em arte este encontro entre seu corpo e o mundo. Então, quando a obra está terminada, ela perdura… ela se transforma no monumento de determinadas sensações, uma espécie de mensagem codificada: eu estive aqui, foi isso que eu senti”, partilha esse encontro que se faz suplementar, atualizável pelo seu público num campo de intensidades, experimentações e risco. É reverter o que está dado e buscar brechas e entres que liberte a percepção de seus automatismo, é devir outro em si mesmo, como a cobra ou a mariposa.

Para dar conta das reflexões sobre o trabalho de Rogério Ghomes serão abordados e servirão de inspiração os conceitos de imagem cristal (Deleuze, 1990; Fatorelli, 2003) advindos de Bergson (2010) e de duração (Bergson, 2005). Outros autores serão convocados no decorrer do artigo.


Quando a imagem é um cristal: Bergson, Deleuze, Fatorelli e a duração

LDA_CWB // 379KM_4H46MIN (2013)

Aqui, tudo tem início com Bergson (2010), na reflexão que esse faz sobre matéria e memória em livro de mesmo nome. Interessa a este artigo, para pensar a imagem cristal, a ponderação realizada por Bergson no que conserne a percepção e a memória, do como esse par se comporta na ação de reconhecimento do mundo, matéria, tornado imagem. O pressuposto é de que haja uma consciência para esse reconhecimento e a memória é a condição necessária para a existência de uma consciência: “[...]não há continuação de um estado sem adição, ao sentimento presente, da lembrança de momentos passados” (Bergson, 2005: 39).

De acordo com Bergson e seus leitores (alguns citados no corpo deste artigo), “[...] a percepção é uma representação selecionada pelo corpo para a ação [...] a percepção pura parte das coisas [...] ela é impessoal. É preciso, portanto a contribuição de uma memória para que a percepção torne-se consciente e pessoal”, (Vieillard-Baron, 2007: 25). Ou seja, a percepção de algo se dá a partir de uma atenção, de um “saber” que a antecede, localizado na memória e resgatado como uma imagem-lembrança que vai guiar a atenção e se misturar ao objeto dado à percepção. A partir daí, formam-se como que circuitos entre o objeto percebido e a memória. A cada nível de percepção e atenção, portanto de tensão, um novo circuito é gerado. Com o aprofundamento da percepção, novos circuitos são formados, partindo todos do objeto e a ele retornando. Esses circuitos se entrelaçam à volta do objeto, formados por memória, que embebe toda a percepção; vão alcançando camadas cada vez mais profundas da realidade e níveis mais elevados da memória. O mesmo objeto se insere repetidas vezes nos “[...] vários circuitos de percepção e de memória, criando cada um uma imagem mental, uma “descrição”, que tende a substituí-lo, a “apagá-lo”, retendo dele apenas alguns traços, sempre provisórios” (Rouillé, 2009: 212). O objeto permanentemente se renova, nunca é o mesmo. “Assim, criamos ou recriamos a todo instante. Nossa percepção distinta é verdadeiramente comparável a um circuito fechado, onde a imagem-percepção dirigida ao espírito e a imagem-lembrança lançada no espaço correriam uma atrás da outra” (Bergson, 2010: 117), até um ponto de total indiscernibilidade. Nesses circuitos de percepção e memória, existe um, o mais próximo à percepção imediata do objeto e que contém apenas o objeto “e a imagem consecutiva que volta para cobri-lo” (Bergson, 2010: 119), onde o objeto se reflete como um duplo, criando de si uma imagem virtual que o envolve (e que rapidamente será envolvida pelos circuitos percepção/memória), nesse lugar, dá-se, segundo Deleuze (2007), uma “coalescência” entre os dois, onde a indiscernibilidade seria total. “Há a formação de uma imagem bifacial, atual e virtual” (Deleuze, 2007: 88), de uma imagem-cristal. Nesse momento, fugaz, ainda não absorvido pelas lembranças, essa imagem é um cristal.

 Como ressalta Zourabichvili (2009), leitor de Deleuze, o cristal aparece no momento em que “[...] o atual, vivido ou imaginado, é inseparável de um virtual que lhe é cooriginário, de tal maneira que se pode falar de “sua própria” imagem virtual. A imagem divide-se em si mesma, em lugar de se atualizar em uma outra, ou de ser a atualização de uma outra” (Zourabichvili, 2009: 43). Deleuze (2007), em passagem do livro Imagem Tempo, para pensá-la no cinema, sintetiza a constituição da imagem-cristal: O que constitui a imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo: uma vez que o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado, que por natureza diferem um do outro, ou, o que dá no mesmo, desdobre o presente em duas direções heterogêneas, uma se lançando em direção ao futuro e a outra caindo no passado. O tempo consiste nessa cisão, e é ela, é ele que se vê no cristal (Deleuze, 2007: 102). O tempo aqui é duração (Bergson, 2005). É o tempo como qualidade, subjetivo não o tempo cronologico do tic tac dos relógios dividido em passado, presente e futuro, mas o tempo de Aion, ilimitado, pura intensidade, rizomático e que de certa maneira pode ser vivenciado no confronto com o objeto artístico.

LDA_CWB // 379KM_4H46MIN (2013)

 Um lugar de trajetórias imprevisíveis, de emaranhados temporais, de permuta entre atual e virtual, presente e passado, real e imaginário, um lugar de potência e devir. Concordando com Rouillé, leitor de Bergson e Deleuze, pode-se afirmar que “[...] perceber um objeto atual presente significa [...] associar-lhe uma imagem virtual que o reflita e envolva, e inseri-lo nos circuitos que o absorvem entre percepção e lembrança, real e imaginário, físico e mental” (Rouillé, 2009: 213). É essa interpenetração do passado no presente que fornece uma continuidade à existência, sem ela “[...] não haveria duração, somente instantaneidade”( Bergson, 2005:39). Fatorelli (2003), tendo como base o conceito deleuziano de imagem-cristal, e de tudo que o precedeu, já explicitado neste texto, e tendo como critério a relação variável das imagens com o tempo e o espaço, utiliza o conceito para nomear as imagens fotográficas que não possuem como viés preponderante a submissão à referência (imagens presentes principalmente no universo da arte), possuidoras que são de realidades que não se confundem com ela. Para Fatorelli, “[...] autônomas, abstraídas do vínculo remissivo de origem, essas imagens situam-se num presente sempre renovado que desperta um passado e prenuncia um futuro igualmente abertos [...]” (Fatorelli, 2003: 33); essas imagens são como presentificações, atualizações expressas em dados arranjos do visível. Provocam a suspensão do aqui e agora, possibilitando nexos com um imaterial, “uma potência de pensamentos [...] quando o que importa não é mais reconhecer, mas conhecer” (Idem). A potência desse tipo de imagem está em ampliar o universo do visível, em sua possibilidade de mobilizar múltiplas temporalidades. Para pensar a série LDA_CWB // 379KM_4H46MIN de Rogério Ghomes é com esse conceito de imagem-cristal que se irá trabalhar.

Então naquilo que aqui importa, para pensar a imagem Cristal neste artigo, se faz necessário pensar a fotografia, o objeto/a matéria da obra aqui estudada, em seu processo de constituição como imagem e isso, claramente, envolve o artista fotógrafo. Isso quer dizer que para além da referência, do objeto presente frente a câmera fotográfica estão também os incorporais, referências invisíveis na imagem. Não é apenas o ato de impressão que importa. Andre Rouille, (2009) é incisivo quanto a isso: “[...] as fotografias ultrapassam cada vez mais a constatação para chegar à problemática, ultrapassam seus referentes materiais para exprimir questões mais gerais. A expressão tende a prevalecer ao atestado, à afirmação de existência” (Rouillé, 2009: 196). Essa expressão é obra de um fotógrafo e será fruída por um espectador que ao se debruçar sobre a imagem o fará a partir de sua memória, daquilo que o constitui como consciência e permite que aja sobre o mundo.

Deste modo, essa presença invisível nas imagens tem relação com a memória, com aquilo que o indivíduo carrega e está sempre em processo de constituição e atualização. Nesse modo de pensar, qualquer ato perceptivo do ser é recoberto pela memória. No caso tratado, é a percepção do fotógrafo guiada pela memória acumulada de toda uma existência que se fará presente nas imagens da série.



O Artista e sua Obra

O artista Rogério Ghomes possui uma espécie de olho máquina, no sentido de que a sua máquina fotográfica mental nunca é posta de lado. A sua presença no agora faz com que viva intensamente o seu órgão visão. Um órgão visão imaterial que, como um polinizador, vai fecundando o seu estar no mundo e abrindo-o para a multiplicidade presente no agora. E é isso que parece ser o estar no mundo de Ghomes: uma presença atenta à aparente banalidade do cotidiano.

LDA_CWB // 379KM_4H46MIN (2013)

Desse modo de ser e estar no mundo de Ghomes nasce a sequência/série visual foco deste artigo, LDA_CWB // 379KM_4H46MIN, realizada em 2013. A obra possui como origem imagens fotográficas realizadas em um de seus deslocamentos entre a cidade de Londrina e Curitiba, Paraná, quando montava uma exposição na cidade de Curitiba. Nesse mesmo período o artista realizava seu doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital – PUC SP, finalizado em 2016. A temática tratada no doutorado fez com que o artista ficasse imerso no mundo digital, sendo inspirado a utilizar as coordenadas entre as duas cidades de seu deslocamento, Londrina-Curitiba, como nome da sequência visual proposta. É interessante notar que a precisão dada ao nome da sequência narrativa contrasta com a imprecisão das imagens, como se pode notar a seguir na sequência visual proposta.

Em uma das imagens da sequência estudada, percebe-se claramente o desfoque proposital do artista fotógrafo Rogério Ghomes. Imagem desfocada, flou, traz à lembrança técnicas utilizadas pelo Pictorialismo, movimento artístico do século XIX, que renasce na fotografia contemporânea. Em termos de acréscimo de sentido, a precisão dos dados e a imprecisão perceptiva indicam aquilo que o real tem de desmedido, de inacessível – nada é o que parece ser. Soma-se a isso as questões ligadas à percepção e a memória, desenvolvidas neste artigo. Sabe-se, a partir de Bergson (2010), que imagens captadas no presente são sempre recobertas pelo manto da memória, memória essa que é também permanentemente atualizada pelo presente. É como se fosse um ir e vir incessante entre passado e presente, um emaranhado que aos poucos perde a forma primitiva, em uma recriação permanentemente. Nesse jogo, a memória se transforma em devir (Deleuze, 2007). Devir de trevas, medos e mistérios oferecidos pela multiplicidade ofertada pela duração (Bergson, 2005). Observa-se também que nessa memória em devir o foco está ausente, visto que as atualizações da memória se fazem de forma permanente tornando sua forma fugidia.

Conclusão

Acredita-se se ter demonstrado as relações do trabalho de Rogério Ghomes na série LDA_CWB // 379KM_4H46MIN, com conceito de Imagem Cristal explicitado no correr deste artigo, principalmente o da interpretação feita por Fatorelli (2003) do conceito de Imagem Cristal para a Fotografia: imagens que retiram o observador de sua zona de conforto e o arremessam numa necessidade de porvir, de mutações e quem sabe, metamorfoses (possibilidade de devir outro em si mesmo). Pensa-se que ficou claro nessa constituição imagética da Imagem Cristal a importância dos processos de percepção e memória, tanto do artista quanto daquele que irá fruir a imagem, embutida aí a ventura de, através de certas obras artísticas, ter-se a experiência da Duração - apesar da aparente linearidade temporal da narrativa, cronos, as imagens ofertadas oferecem a possibilidade de um encontro com um tempo vertical, Aion.

 
 

LDA_CWB // 379KM_4H46MIN (2013)
Impressão pigmento mineral sobre Museum Pró Canvas 385grs, 210 x 144cm.

 

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