a imagem e sua espessura ou o sequestro do fotográfico em Rogério Ghomes

Marco Antônio Vieira

Abril / 2021

 

Prelúdio

É como se uma densa cortina de névoas viesse cobrir por completo- ou quase- o campo de visão, como esta imagem de duas cadeiras vermelhas que obstrui qualquer possível tentativa interpretativa de inserir O fim nunca chega (2013), de Rogério Ghomes, em uma linhagem fotográfica derivada da Nova Objetividade Alemã (Neue Sachlichkeit), movimento das décadas de 60 e 70 do século XX.

O fim nunca chega (2013)

Ainda que a imagem de Ghomes comungue do rigor formal que caracteriza a estética destas fotografias, o acesso à limpidez ótica dos signos que se capturam nesta obra é negado por um efeito que desfoca o que a imagem dá a ver, velando-a, à maneira de uma cortina envidraçada e fosca que se interpusesse entre ela e quem a olha, como que a reclamar que se infrinja sua espessura, inscrevendo na obra, a partir de sua leitura sígnica, a transgressão constitutiva que é o ato da captura do sujeito vidente pela imagem (LACAN, 1996).

A imagem recusa aqui sua condição de transparência referencial, calcada no vínculo mimético, longamente associado à fotografia.

Imagem interditada, pois inscrita na película vítrea do olhar. Imagem não apenas ótica. Eis o paradoxo que recobre a imagem em Ghomes: o visível e o visual não coincidem. E tal desencontro é a um só tempo teórico e poético em sua abordagem do fotográfico.

Estupor da imagem, colapso da referência como obviedade da verossimilhança, malogro da duplicação mimético-naturalista: o real, intransferível, insubstituível, inalienável, incontornável, inexorável gozo fotográfico.

É como se, daquilo que se fez da luz na pintura barroca, retivéssemos tão somente o efeito de suas luminescências: luz flamífera a dizer-nos, em sua granulação, que a imagem não comporta sinonímia necessária com a clareza ou com a nitidez.

Imagem que emana do fotográfico como oximoro estruturante e constitutivo. Impasse desejante da imagem, a seguirmos a argumentação de W.T.J. Mitchell em O que as imagens realmente querem? (2015).

O índice, a Différance segundo Derrida e o “Véu de Verônica”

O “Véu de Verônica” serve-nos, em nossa leitura da obra de Rogério Ghomes, como alegoria e como um motivo a comandar suas intervenções no fotográfico, de vez que, para o artista paranaense, o fotográfico encerra o espaço de investimentos que se desprendem de sua condição como um “objeto teórico”, como nos instrui Hubert Damisch em seu prefácio para O fotográfico, de Rosalind Krauss: 

A fotografia representa um destes objetos que chamamos ‘teóricos’ e cuja irrupção em determinado campo transtorna tanto o mapa, que se torna necessário retomar o trabalho de mediação começando do zero, introduzir novas coordenadas e talvez mudar o sistema de representação.

(DAMISCH, 2002, APUD KRAUSS, 2002, p. 13)

Barroc (2015)

Barroc (2015)

Em Rogério Ghomes, é a obstinação em evitar a naturalização acomodatícia da experiência fotográfica que aparenta animar sua obra. As séries Barroc (2016) Memórias sequestradas (2017) e Nada mais útil que o silêncio (2020) confirmam a vocação, à primeira vista desviante, mas, na verdade, espantosamente rigorosa em articular sua poética a partir de processos que ecoem insuspeitadas a invenção da fotografia e sua ancoragem laboratorial, antes química que ótica.

O fotográfico emerge então como inscrição, uma quase pegada, um rastro, um traço que afirma sua existência referente e referencial não exatamente como captura do visível mas antes como vestígio de uma corporeidade que risca e grafa em luz sua marca:  índice, dedo que indica a verdade de uma presença à maneira de uma cicatriz.

Nada mais útil que o silêncio (2020)

E assim Rogério Ghomes inscreve a perturbação e o desvio em suas imagens fotográficas, como a intensa vermelhidão de um filtro que vem recobrir e velar como uma espécie de película fílmica, a imagem políptica de instantâneos de um menino que brinca ao longe em Incrível como um distúrbio afeta a credibilidade (2007), nessa espécie de reminiscência alusiva e citacional a Alair Gomes (1921-92), menos por suas reverberações eróticas indubitavelmente, que por seu olhar e estética contemplativos.

Os títulos na obra de Ghomes encerram toda uma perspectiva do autor sobre a significação de suas obras e sua ancoragem teórica e esta obra da primeira década do século XXI afirma a complexidade sígnica que caracteriza a visão do fotográfico e de seus desdobramentos conceituais e poéticos, naquilo que concerne à opacidade referencial da imagem e suas implicações veritativas, um posicionamento que destoa da função que se assinalou para a fotografia desde sua aparição histórica.

Neste sentido, o que se produz em sua poiesis integra o que Douglas Crimp nomeará “práticas fotográficas dissidentes” (2005, p. 3).

Philippe Dubois (2011), descortina-nos a cena em que a complexidade sígnica do fotográfico se desdobra tripartite, em uma leitura calcada em Charles Sanders Peirce (1839-1914), justapondo, interconectadas, ainda que independentes, suas dimensões icônica, simbólica e indiciária.

Em sua argumentação, Dubois irá debruçar-se sobre a natureza icônica do signo, em que o vínculo com o referente baseia-se em uma relação de semelhança confeccionada para o artefato imagético. Assim, uma pintura figurativa mantém com o referente um vínculo mimético que se ampara na fisicalidade, nos meios expressivos e morfológicos, na sintaxe pertencentes àquele suporte de imagem.

Uma fotografia mantém, no mais das vezes, alguma relação de natureza icônica com o referente – objeto fotografado-, todavia, não é esta função, constantemente sublinhada historicamente (o poder da fotografia em obter uma imagem que pode servir como evidência), de que algo, de fato, ali esteve, que constitui a especificidade do fotográfico.

Incrível como um distúrbio afeta a credibilidade (2007)

Que a imagem possa servir de comprovação até jurídica é, na verdade, marca do que é o fotográfico como uma marca física que se inscreve sobre uma superfície que se destina ao olhar.

É o ato da captura em luz, nada mais, nada menos, ou melhor, nada antes ou depois, que caracteriza a especificidade inalienável do fotográfico.

Que a imagem fotográfica possa ser “icônica” em sua aparência como remissão crível ao que se fotografou é, para este argumento que persegue Philippe Dubois, ancilar, secundário em relação ao ineditismo histórico e laboratorial que singulariza o ato fotográfico como produção não apenas imagética mas sobretudo técnica.

O indiciário descrito por Peirce remonta ao fotograma: uma “fotografia” obtida sem aparelho ou aparato fotográfico, por uma simples ação da luz: “no quarto escuro, colocam-se objetos opacos ou translúcidos diretamente sobre o papel sensível, expõe-se o conjunto assim exposto a um raio luminoso e revela-se o resultado.” (DUBOIS, 2011, p. 70).

Essa origem do fotográfico, uma imagem que surge como um jogo de “luz e sombra”, como nos instrui Dubois, e de “forma alguma uma imagem mimética ou figurativa” (op. cit., p. 70), curiosa e reveladoramente avizinha-se da configuração sígnico-processual do véu de Verônica, rastro indiciário do corpo de Cristo na superfície têxtil. Ali, assim como no Santo Sudário, se inscreve a imagem “imprecisa” porém “verdadeira”, sem a interferência manual. É a noção de relíquia que se deposita nos contornos daquilo que ali figura.

Não nos parece ser de outro lugar que Rogério Ghomes irá retirar a sua concepção de imagem a partir do que lhe fornece o fotográfico como um motivo a ser desconstruído, desviado, permanentemente diferido (DERRIDA, 2009), a ponto de que sua significação categórica e definitiva, o sepultamento da obra, sua cessão significante  sejam indefinidamente adiados. Estratégia de evitação por parte do sujeito que se advinha a partir da obra.

Em Profano Sudário , obra de 1997, apresentada na VI Bienal de Havana, o artista insere impressões fotográficas de sua nuca em fronhas. Ali, a interdição àquilo que nos empresta a identidade- o rosto- a um só tempo convulsiona e afirma o campo semântico da retratística na história da imagem no Ocidente.

O retrato é, sobretudo, a devolução da imagem que autoriza o acesso ao “próprio rosto”, que só os anteparos especulares em última instância são capazes de viabilizar. Que o retrato e, em particular, sua versão fotográfica representem um marco na história da representação (BARTHES, 2015), acaba por adquirir uma complexificção intrigante nesta obra de Rogério Ghomes, pois a visão da nuca leva-nos à constatação de que a “própria imagem” será sempre uma imagem do outro, imagem alterada, diferida, pois que distanciada temporalmente de sua captura.

Profano Sudário (1997)

A imagem, enquanto constituição de iconicidade, estará sentenciada a uma relação de descompasso e diferimento, a différance derrideana, inexoráveis para com o ato fotográfico e sua inscrição do real indiciário. Que o artista tenha nomeado uma obra produzida no final da década de 90 do século XX Profano Sudário é um sintoma de latências poéticas e temáticas que viriam a dilatar-se, modulando-se e amadurecendo ao longo de sua obra.

Uma imagem que se faz, como a inscrição em luz do princípio fotográfico indiciário iluminado por Philippe Dubois, é alegorizada em Profano Sudário: a imagem que vem à luz é a imagem de uma absorção que se risca na superfície que permite seu acesso icônico ao outro da leitura – sua dimensão simbólica. Ali, instalava-se o grão de toda uma sintomatologia poética à qual a obra de Rogério Ghomes responde em efeitos que se materializam como que a retomar este pequeno e insistente germe indiciário.

Dito de outro modo, o grão indiciário que Ghomes engenhosamente subverte ao mesmo tempo que mantém, como se sua oclusão desfizesse o fiar simbólico de suas imagens, articula-se como alegórico a encampar a sua poética processual e constitui-se como um leitmotiv estruturante, o centro de pulsação de sua obra: uma obra que recusa o que a história ingenuamente colou à fotografia. Dentro dessa perspectiva, desenha-se o horizonte ético e estético do fotográfico em Rogério Ghomes.

O Simbólico segundo Rogério Ghomes ou a Imagem e sua Legenda: Dupla Espessura da Imagem

Talvez haja um temor a rondar o artista que parta do fotográfico como um risco do real, talvez se trate do mesmo horror ou espanto que se apossou daqueles e daquelas que primeiramente despertaram para a paradoxal irrealidade que a constatação de que se pode de fato capturar o vivo como morto, pois que, como bem nos lembra Roland Barthes em A câmara clara (BARTHES, 2018), a experiência de fotografar diz muito mais da morte ao aparentemente deixar o vivo marcar-se como uma espécie de  tatuagem, pois que o momento que ali se risca, repetir-se-á idêntico a si mesmo por toda a eternidade e este momento de fato existiu.

A fotografia, neste sentido, opera na eternidade de um momento que se reitera indivisível, mas que, no entanto, será investido de sentidos por aquele que a olha.

É nesta gangorra entre o índice e o que o icônico poderá fornecer ao funcionamento simbólico da imagem, sua constituição como um texto cuja significação só se dá a partir da tríade formada pelo sujeito que fotografa, pela obra e pelo sujeito que vê a imagem e que é por ela “capturado”, a seguirmos Jacques Lacan (1996).

Assim, a obra de Rogério Ghomes opera a partir da tensão entre o indicário e o simbólico. A visada barthesiana da repetição idêntica a si no fotográfico é bastante procedente, contanto que a circunscrevamos à experiência incontornável de um momento que indubitavelmente é o “mesmo” em sua condição de marca temporal. Todavia, o que intriga Ghomes aparenta ser precisamente a instabilidade interpretativa, o que Marie-José Mondzain (2015), nomerá a “indeterminação fértil”, que, em nosso texto, se associa a aventura do olhar.

Afinal, como nos lembra a teórica holandesa Mieke Bal (1999), a obra só existe como integrante da tríade indissociável que engloba o sujeito que produz a obra e aquele que a lê e interpreta. É este o circuito que constitui o eixo de funcionamento do fotográfico em Rogério Ghomes. 

Uma vez que nos resignemos à essa “rasgadura” subjetiva, poderemos conciliar a natureza incontornável de índice do fotográfico à presença que perturba ao mesmo tempo que confirma a imbricação entre sujeito vidente e objeto do olhar no próprio tecido no texto barthesiano quando ele convoca à cena de sua teorização o punctum:

Talvez se pudesse dizer que A câmara clara é o livro da consciência rasgada do semiólogo: pela escolha mesma de seu objeto, a fotografia, é um livro em que o intratável teórico, ou seja, no fundo o objeto do pensamento sobre o visível, é inteiramente levado para o lado do referente e do afeto.

(DIDI-HUBERMAN, 2015, p.339.Grifos do autor).

De fato, o punctum barthesiano é de tal modo potente em suas ressonâncias e “verdade” do sujeito do inconsciente que se “afeta” esteticamente, que sua contribuição não será ignorada por Georges Didi-Huberman, quando ressalta que o que lhe parece subsistir no conceito cunhado por Barthes é sua “pertinência femonenológica”, antes que “semiológica”, o punctum é um “acidente visível” para Didi-Huberman , um “sintoma do mundo, antes que da imagem”.

Essa oscilação incessante entre o índice e as indeterminações desejantes da imagem, uma questão problematizada por W.J. T. Mitchel (Op. cit.), que deslocará a questão para uma espécie de desejo que incrusta na imagem e opera a partir dela leva-nos à concepção lacaniana do sujeito como sujeito do olhar:

Para começar, preciso insistir nisto – no campo escópico, o olho está do lado de fora, sou olhado, quer-dizer, sou quadro. É aí que está a função que se encontra no mais íntimo da instituição do sujeito no visível. O que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora. É pelo olhar que entro na luz, e é do olhar que recebo seu efeito. Donde se tira que o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna, e pelo qual – se vocês me permitem servir-me de um termo, como faço frequentemente, decompondo-o- sou fotografado.

(LACAN, 1996, p. 104. Grifos do autor)

LDA_CWB, 379km_4h46min (2013)

A partir da noção de campo escópico como aquele em que o sujeito passa a existir a partir de sua condição de objeto olhado, uma reflexividade fusional instaura-se na participação do ótico como um campo que organiza o campo representacional.

Imagem cuja espessura (seu embaço em O fim nunca chega de 2013 ou em LDA_CWB, 379km_4h46min de 2013, sua intencional e artificiosa coloração em Incrível como um distúrbio afeta a credibilidade, de 2007 e Árbol, de 2014) é o resultado de um singular arranjo teórico-poético que complexifica as dimensões icônica e simbólica do índice fotográfico. Aí, enlaçam-se sujeito e linguagem em Rogério Ghomes.



O Arrebatamento da Imagem segundo Rogério Ghomes em Barroc, Memórias Sequestradas e Nada mais útil que o silêncio

Barroc, série de 2016 e Memórias Sequestradas, de 2017 relacionam-se intimamente a partir do campo semântico que atravessa a noção de temporalidades múltiplas a comandar o colecionismo, nestas imagens feitas das vitrinas de antiquários em cidades visitadas pelo artista.

Estas duas séries articulam-se, em sua dimensão icônica, como cápsulas narrativas que buscam iluminar a impossibilidade, no mais das vezes, de rastrear com exatidão a origem dos objetos que figuram nas coleções antiquárias.

Versões sobreviventes dos gabinetes de curiosidades, embriões dos museus, os antiquários estruturam-se heterocrônicos, no sentido de que suas “coleções” reúnem objetos das mais distintas origens e temporalidades.

Memórias sequestradas (2017)

Encontramo-nos em um terreno varado por temporalidades variadas em um arranjo que, longe de visar ao disfarce ou “sutura” deste desconcerto temporal, celebra o passado no presente, sua sobrevivência heroica e nostálgica a partir de uma lógica colecionista em que os objetos, cada um deles é preciso que se o diga, ocupa ali um lugar a um só tempo único e coletivo. As significações individuais emprestam valor de troca aos objetos que integram a coleção mas igualmente retiram do entorno sua valoração.

Barroc e Memórias Sequestradas configuram-se simbolicamente como comentários imagético-narrativos em torno da  interhistoricidade (BAL, 2018) que marca a abordagem do histórico por museus ao redor do mundo ocidental em exposições recentes: os tempos convulsionam-se sincrônicos (simultâneos) antes que diacrônicos (lineares) e há transporte sígnico, cultural, geográfico que converte a cultura, a arte e a imagem contemporâneas em um território de trânsitos, de passagens, de instabilidades, como aquele que estas imagens descortinam.

 Que o reflexo do vidro impeça a distinção entre a interioridade e a exterioridade, contaminando as fronteiras a separar o dentro e o fora do espaço antiquário é sintoma – ou metáfora, a seguirmos Lacan- de uma corrente subterrânea que faz com que as imagens que aqui vemos apontem para a condição desde sempre anacrônica e “impura” do objeto histórico.

Que este desnudamento do funcionamento interhistórico de Barroc e Memórias Sequestradas se dê a ver a partir do que elas encerram como inconicidade desvela a compreensão de seu autor da metaforização imagética.

O vidro/espelho captura o sujeito vidente, enredando-o na armadilha que é a trama de cruzamentos históricos encarnados nesta confusão entre o reflexo, o que a imagem refletida devolve, e o que a transparência, apenas parcial do vidro da vitrina oferece ao olhar transeunte que ali se detém como que a entregar-se à deriva poética destas translações incessantes entre o especular e o olhar que invade o interior da loja e seus nômades objetos.

São imagens “roubadas/aladas” como que a ecoar a homonímia existente na língua francesa entre “roubar” e “voar”, alojada no significante “voler”, explorada por Jacques Lacan em sua leitura do conto de Edgar Allan Poe em O seminário sobre a carta roubada (1998). A um só tempo furto ótico, escópico, ocular e transporte nomádico.

Cabe aqui à remissão à polissemia do vocábulo francês para “sequestro”, a saber, enlèvement, que significa não apenas “rapto”, mas igualmente “arrebatamento”.

Há nas reverberações semânticas de “sequestro”, toda uma complexidade lexical de que gostaríamos de valer-nos para realçar o que uma tal semantização implica para o funcionamento simbólico destas séries, como se as exploram aqui.

O rapto comporta ainda um transporte, uma translação em que algo inesperada e inadvertidamente é subtraído, poder-se-ia mesmo sugerir “roubado”, pois que retirado do lugar que lhe era legítimo.

Memórias sequestradas (2017)

Imagens que se roubam por meio de olhares furtivos: os preciosos objetos que povoam a interioridade dos antiquários são, de um golpe, vítimas de um transporte não autorizado. É a significação poética que aqui triunfa e que permite, ainda que furtivamente, o acesso ótico à preciosidade destas coleções. Aprisionamento e posse  icônicos  na pele da imagem. 

 Sua coexistência, naquilo que as imagens de Ghomes encerram como o momento de captura do ato fotográfico, nada faz senão confirmar a convulsão temporal – heterocrônica e interhistórica – que atravessa a complexa narratividade destas séries: a fotografia converte-se no espaço mesmo da de uma multitemporalidade que a imagem encena, em que se amalgamam o instante do rapto e captura fotográficos e a narrativa de tempos heterogêneos de que os objetos fotografados são testemunha material.

[Im]possível ficção coetânea do fotográfico a denunciar a [in]coerência representacional de que os gabinetes de curiosidades, os museus e os antiquários são provas vivas.

Em Nada mais útil que o silêncio (2020), a série mais recente de Ghomes, produzida em uma viagem a Salvador que precedeu a instauração da pandemia do COVID-19 no país, o artista parte de uma admoestação originalmente em latim Nihil utilius silentium, que deveria servir como inspiração e estímulo para a introspecção e consequente interiorização dos valores cristãos pelos monges que viviam no Convento de São Francisco, na capital baiana.

Memórias sequestradas (2017)

O convite a um silêncio que só se pode compreender como aquilo a conquistar-se como provação religiosa, uma vez que esta epígrafe legendava, por assim dizer, narrativas iconográficas sob a superfície de azulejos setecentistas em que figuram entidades pagãs da mitologia greco-romana, comporta uma desconstrução de rígidas oposições binárias entre silêncio e ruído a partir do eixo sagrado-profano, pois que toda a iconografia que caracteriza a Idade Clássica da Representação, compreendida entre os séculos XVI e XVIII, e mesmo a concepção figurativa que triunfa no Protorenascimento e durante boa parte do período oitocentista, é de raiz clássica e, portanto, pagã, em sua remissão à escultura grega e ao muralismo pictórico da Roma Antiga.

Nesta série azulejada, Ghomes esquarteja e decompõe a azulejaria original, aproximando-a de uma inclinação de contornos abstracionistas, o que aparenta confirmar-se na exploração da paleta de azuis que comanda o princípio de estruturação cromática de Nada mais útil que o silêncio, em que o fotográfico, segundo o artista, acaba por descortinar as latências morfológicas abstratas e mesmo geométricas que desde sempre estruturam e informam o trabalho figurativo no Ocidente, como se o pode ler  com toda a clareza em Giulio Carlo Argan (2010).

Nesta abordagem interhistórica, Rogério Ghomes reconfigura os azulejos, produzidos entre 1749 e 1752, e os desaloja e desloca, a partir de uma desconstrução autorizada pelo enquadramento fotográfico, para uma visada nitidamente construtivista, que se avizinha inesperada do inventivo, rigoroso e preciso trabalho com azulejos de Athos Bulcão (1918-200).

Essa “profanação” interhistórica reitera-se na obra de Ghomes e assume as mais distintas materializações, como se pode atestar em sua subversão do idioma retratístico em Profano Sudário, de 1997, em que o título – profético e revelador - igualmente reforça esta tese interpretativa, ao aglutinar termos aparentemente irreconciliáveis, ou nos princípios narrativos e morfológicos que compõem Barroc, Memórias Sequestradas e Nada mais últil que o silêncio.

Em seu entendimento da experiência fotográfica, Rogério Ghomes parece obstinado em [re]aprender a olhar. Uma tal ambição, que desenha um horizonte a um só tempo ético e estético, para sua obra, emerge de uma desconstrução conceitual da captura física, antes que ótica, que mobiliza, em nosso entender, os esforços do artista em um incansável exercício de desnaturalizar as superficiais e, muitas vezes, falaciosas interpretações da fotografia.

“Fazer ver –sempre- pela primeira vez” aparenta constituir-se como o mote da investigação poética em Rogério Ghomes. Ignorando a [im]possibilidade de uma tal tarefa, Ghomes abisma-se na teimosia de dar a ver o [in]visível do fotográfico, este momento único a reiterar-se perpetuamente desviante, pois que alguém em algum lugar insistirá em o traduzir.

Estar diante daquilo que produzem as imagens de Rogério Ghomes é como estar diante deste complexo nó em que se imbricam o icônico, o simbólico e o indiciário.

O fotográfico e a imagem: duas realidades cuja não-coincidência intriga este artista, como perplexos estaríamos diante deste momento singular em que Verônica enxuga o suor e o sangue de Cristo e inscreve, no tecido, uma imagem-relíquia, um resto, um traço, um índice do corpo sagrado e, como se ao mesmo tempo, pudéssemos ver o olhar de Verônica fisgado pelos olhos do corpo de quem se sequestrou a imagem sagrada.

O fotográfico é o resíduo de uma imagem que nunca poderá existir, e disso o sabe Rogério Ghomes. Daí, surgem sua fotografia e tudo o que estes títulos dela retiram, compondo imagem sobre palavra e palavra sobre imagem.

O fotográfico, em Ghomes, é uma imagem soprada em nossos ouvidos neste momento que é o ato irrecuperável do fotográfico.

Arrebatamento da imagem. Sequestro do fotográfico.




Crédito fotográfico: Jean Peixoto

Referências

ARGAN, Giulio Carlo. “O valor da figura na pintura neoclássica” In: A arte moderna na Europa de Hogarth a Picasso. Tradução, notas e posfácio de Lorenzo Mammi. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. pp. 233-243

BAL, Mieke (editora). The practice of cultural analysis- exposing interdisciplinary interpretation. Stanford: Stanford University Press, 1999

______________________. “Towards a Relational Inter-Temporality” In: WITCOX, Eva (editora). The transhistorical museum – mapping the field. Amsterdam, Leuven e Haarlem: Valiz, M-Museum & Franz Hals Museum, 2018

BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução Julio Castanon Guimarães. São Paulo: Nova Fronteira, 2018

CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu.  Tradução de Fernando Santos. Revisão de Macelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença.  Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes, Perola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2009

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem- questão colocada aos fins de uma história da arte. Tradução Paulo Naves. São Paulo, 34, 2015

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Tradução Marina Apenzeller. São Paulo: Papirus, 2011

KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Prefácio de Hubert Damisch. Tradução Anne Marie Davée. Lisboa: Editorial Gustavo Gili, 2002

LACAN, Jacques. O Seminário Livro XI – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.  Tradução de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

__________________. “O seminário sobre a carta roubada” In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 13-66

MITCHELL, W.T.J.“O que as imagens realmente querem?” In: ALLOA, Emmanuel (org.) Pensar a imagem. Tradução de Marianna Poyares. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. pp. 165-189

MONDZAIN, Marie-José. Homo Spectator- ver, fazer ver. Prefácio e Tradução Luís Lima. Lisboa: Orfeu Negro, 2015

 

O FIM NUNCA CHEGA (2013)
Impressão pigmento mineral sobre Museum Pró Canvas 385grs, 100 x 150 cm.

BARROC (2015)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g / m sob metacrilato, 120 x 80 cm.

NADA MAIS ÚTIL QUE O SILÊNCIO (2020)
Impressão pigmento mineral sobre Museum Pró Canvas 385grs 100 x 200 cm.

INCRÍVEL COMO UM DISTÚRBIO AFETA A CREDIBILIDADE (2007)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g / m sob metacrilato, 200 x 320 cm, Coleção McLAren.

PROFANO SUDÁRIO (1997)
Instalação, fotografia, fronhas, dimensões variáveis, Coleção Fundação Cultural de Curitiba.

LDA_CWB // 379KM_4H46MIN (2013)
Impressão pigmento mineral sobre Museum Pró Canvas 385grs, 144 x 210cm.

MEMÓRIAS SEQUESTRADAS (2017)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g/m, dimensões variáveis.

 

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